Sobre um inquérito literário
Diferença entre o
género de cultura que há hoje em Espanha e Portugal. Em Espanha há um intenso
desenvolvimento da cultura secundária, da cultura cujo máximo representante é
um homem de muito talento; em Portugal, essa cultura não existe. Há porém a
superior cultura individual que produz os homens de génio. E, assim, não há em
Espanha hoje uma figura de real destaque genial: o mais que há é figuras de
grande talento —um Diego Ruiz, um Eugenio d’Ors, um Miguel de Unamuno, um
Azorín. Em Portugal há figuras que começam na centelha genial e acabam no génio
absoluto. Há individualidades vincadas. Há mais: há um fundo carácter europeu
no fundo. Como é individual, e o meio social não está organizado, a cultura
portuguesa está anarquizada, cada homem de génio vivendo consigo próprio, e, o
que é pior, cada um escrevendo um pouco sem disciplina. Cabe afastar alguns
deste juízo —Junqueiro supremamente. E cabe advertir que essa organização da
cultura nacional começou, no Porto, com a “Renascença Portuguesa”. Em Espanha
há um meio culto a mover, a influenciar, mas não há o Homem que o mova. Em
Portugal há uns poucos de homens capazes (por seu valor intelectual) de mover o
meio; falta, porém, o meio culto que movam. De modo que em Portugal é preciso
que apareça um homem que, a par de ser um homem de génio, para que possa mover
o meio por inteligência, seja um homem de sua natureza influenciador e
dominador, para que ele próprio organize o meio que há de influenciar, e ir
influenciando ao construi-lo. Diz Wordsworth, num dos prefácios críticos a uma
das edições das Lyrical Ballads, que o poeta tem de criar o meio que o
compreenda. Assim é, quando, como no caso que Wordsworth citava, que era o seu
próprio, o poeta é um grande original.
Onde está o erro da
“Renascença Portuguesa”? O primeiro é em estar no Porto. De resto, não podia
ter nascido senão no Porto, de modo que, como em tudo, se repararmos bem, na
própria única coisa possível está o defeito inevitável. Sem esse defeito, não
teria havido a causa, nem o efeito portanto.
Toda a literatura
ibérica, e a nossa não predominantemente, sofre dum provincianismo radical.
Extra-pertencemos à Europa, somos uma espécie de adjacência civilizada. Na
Catalunha o fenómeno que descreve toda a cultura espanhola tomou incremento
especial; de aí, mais do que em Castela, confinarem ao génio muitos dos seus
homens. Mas, fundamentalmente, o que há é sem dúvida um grande desenvolvimento
da cultura secundária. Há um esplêndido jornalismo. A influência da América
Espanhola tem sido grande nisto. Em nós, nenhuma tem sido a influência do
Brasil. Urge, por isso, para que criemos uma cultura secundária idêntica à da
Espanha, que criemos as condições que a criaram. Urge que estreitemos
inteligências com o Brasil. Urge que pacifiquemos o meio social e eliminemos a
fermentação revolucionária. Urge que nos organizemos economicamente e saiamos
um pouco, porque pouco seria muito para nós, do nosso sonho, não de poetas
(como dizem os idiotas nas conferências), mas de mandriões.
Razão teve o Sr.
António Sérgio quando insistiu nesse ponto.
Uma vez criado um
meio culto entre nós, ver-se-á de repente esse meio culto tomar um relevo, uma
importância excepcional. É que nós realizamos a absurda situação de ter criado
já os dominadores, os influenciadores, as figuras-chefes desse meio, sem que
houvéssemos criado o meio ainda.
Fernando Pessoa (1914?)
Fernando Pessoa, Páginas de
Estética e de Teoria e Crítica Literárias (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg
Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho), Edições Ática, Lisboa, 1966.
* * *
Sobre el interés de Fernando Pessoa por la obra de Diego Ruiz pueden consultarse los trabajos siguientes:
Jordi Cerdà Subirachs, «Fernando
Pessoa, ¿lector de Diego Ruiz?», Perfiles de la traducción
hispano-portuguesa, III / Xosé Manuel Dasilva (ed. lit.), 2010, págs. 25-43.
Jordi Cerdà Subirachs, «Pessoa vienés»,
Pessoa Plural - A Journal of Fernando Pessoa Studies, 3, 2013, págs 28-45.
* * *
Lista manuscrita conservada en la Biblioteca Nacional de
Portugal (BNP): (E3, 48B-73. Referencias
bibliográficas de Diego Ruiz.
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